quarta-feira, 14 de dezembro de 2016



A voluntária catarinense que quer 
transformar a realidade das cadeias

Leila Pivatto preside a Associação de Proteção e Assistência ao Condenado, a primeira em Santa Catarina

Por Aline Torres (jornal Notícias do Dia)

No discurso do padre, a catarinense Leila Pivatto, 67 anos, soube que a Pastoral Carcerária precisava de voluntários.  Viúva e com quatro filhas criadas decidiu dedicar seu tempo aos prisioneiros. Desde lá, viveu uma década de trabalho árduo, enxugou muito gelo, mas confiante de que bandido bom é aquele que tem segunda chance, protagonizou uma revolução. Será presidente de uma cadeia sem armas, agentes de segurança, violência ou repressão. A primeira de Santa Catarina, a centésima do mundo.
A APAC, que na sigla formal significa Associação de Proteção e Assistência ao Condenado, mas pode ser lida como, Amando ao Próximo Amarás a Cristo, será inaugurada em março. No Complexo da Agronômica, em Florianópolis, há cinco unidades que detém quase 1,6 pessoas. A APAC será a sexta. Mas, a única semelhança com os vizinhos de muro é o terreno. A casa ampla e solar não é criada para punir.


Ao invés de agentes do Deap (Departamento de Administração Prisional), a organização será responsabilidade dos voluntários, não só da Igreja Católica, mas de diversas áreas. São advogados, médicos, dentistas, psicólogos, professores de música e yoga, gente que acredita que para resolver a violência das ruas é preciso mudar a realidade do cárcere. E esse lugar tão digno pode soar como a cidade perdida de Atlântida, uma idéia platônica, mas na verdade, a APAC é celebrada pela ONU (Organização das Nações Unidas), como o único modelo prisional que deu certo no Brasil, o quarto país com maior população carcerária.

Nas prisões nacionais estão confinadas aproximadamente 600 mil pessoas. Em uma equação manézinha podemos converter para 33 estádios da Ressacada completamente lotados. Sendo que 40% são inocentes. Sim, de acordo com a Constituição até o julgamento não se pode dizer o contrário. E de juízes eles não chegaram nem perto.  A primeira APAC foi criada em São José dos Campos (SP) pelo advogado Mario Otoboni em 1972. Seus resultados são os iguais aos das suas semelhantes. Custam aos cofres públicos 25% do valor de uma prisão convencional, que é de R$ 3 mil por indivíduo, e o índice de recuperação é de 90%, contra 20% das cadeias padrões.

“A sociedade pensa que o preso é um extraterrestre. Mas, ele é o filho do teu vizinho, o primo da tua amiga. Não há um distanciamento real. Até porque é muito fácil ir para cadeia, não precisa nem de condenação”, disse Leila. A APAC é considerada sua grande obra na Pastoral, obviamente, batalhada em conjunto com outras pessoas. Mas é Leila quem trabalha 12 horas por dia.

Sua missão basicamente é suprir as ausências do Estado. Das sete da manhã às 19h, ela atende múltiplas demandas. Empresta calcinhas e sutiãs, de cores claras, para as mulheres que não estão acostumadas com as exigências das revistas íntimas. Oferece remédios e materiais de higiene para os presos. Quando “abrem as portas da cadeia e só dizem tchau”, ela ajuda com dinheiro das passagens. E se por acaso não houver para onde ir, indica o caminho da Casa do Egresso Padre Ney Brasil, inaugurada há pouco tempo pela Associação Beneficente São Dimas, braço social da Pastoral.
Lá os ex-detentos são acolhidos por dois meses e recebem apoio para refazerem documentos e conseguirem emprego. A dignidade, entretanto, tem um alto custo. Com apoio da Fundação Nova Vida e de doadores são organizados bazares. Também são escritos projetos nas Varas Criminais. Graças a essas verbas o consultório odontológico foi construído. “Lembro de um detento. O dentista colocou seus dois dentes da frente e ele não conseguia parar de rir para o espelho. Essa é minha crença. O resgate da humanidade, ou como prega nossa cartilha, na morte do criminoso para a salvação do homem. Vejo todo preso com um inocente. Ninguém é perigoso. A pessoa tem momentos de raiva, de delinquencia, mas isso não a define”, disse.

Leila é defensora da justiça restaurativa, que cura por dentro, não da punitiva – modelo reproduzido desde o Brasil Colônia. A primeira unidade prisional do país foi a Casa de Correção da Corte, criada em 1850, depois transformada no extinto Complexo Penitenciário Frei Caneca, no Centro do RJ. A estimativa de sobrevivência na instituição era de dez anos.
As condições atuais das cadeias, no entanto, não são tão melhores. O Conselho Nacional de Justiça prestou inúmeras queixas contra o Estado por violação dos direitos humanos e torturas. Há celas para dois homens onde estão amontoados dez, sem vaso sanitário ou colchões. O filósofo francês Michel Foucault já palestrava na década de 70 que “a prisão, em vez de devolver à liberdade indivíduos corrigidos, espalha na população delinquentes perigosos”.

Pela consciência de que muros não contêm violência, é que Leila acredita que o foco das instituições prisionais deveria ser o retorno à sociedade. “As penas são para privar da liberdade. Mas, a privação é total. Não há saúde, educação, trabalho. Nas nossas cadeias as pessoas entram por crimes pequenos e saem revoltadas. Descaracterizadas como gente. Para começar na delegacia já perdem todos os documentos delas”, disse.

Para reverter o modelo fracassado, os mandamentos apaquianos são maiores que os de Moisés. Doze leis prezam por direitos básicos, o máximo de convívio com os familiares e com a sociedade, a busca pela espiritualidade – independente da religião -, e a ajuda mútua entre os “recuperandos”, como são chamados dentro das portas do prédio azul. “Essa é a cor de todas as associações, traz calma”, explica Leila.
O Complexo da Agronômica nasceu em um processo de higienização da cidade na década de 30. Foi construída na vila operária, situada entre morro e mangue, a “Penitenciária da Pedra Grande”, com capacidade para 50 reclusos, quase todos jovens negros e pobres. Perfil que segundo o Depen (Departamento Penitenciário Nacional) permanece intacto. “São carentes. Sobretudo, de perdão”, conclui Leila.

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