Lei reduz pena por meio da leitura
Lei já muda rotina dos presídios cearenses.
Incluindo autores de crimes hediondos, a medida objetiva humanizar o sistema
carcerário
Paulo Renato
Abreu, jornal O Povo
Daniele estava
“na hora certa, no lugar errado” naquela quarta-feira em que foi presa. Era 6
de fevereiro de 2013, quando ela e a mãe foram “detidas por 33”, tráfico de
drogas. No Instituto Penal Feminino (IPF), em Itaitinga, se viu cercada de
grades cor-de-rosa que não aliviam o cárcere. Na nova rotina, porém, Daniele
encontrou uma oportunidade de se redescobrir. “Eu não gostava de ler, mas aqui
dentro procurei uma ocupação, uma tarefa”, admite. Cheia de orgulho, a mulher
falante e vaidosa se apresenta hoje como a responsável pela biblioteca da
unidade prisional.
Toda semana, “a
menina que empresta livros” percorre todas as alas, com uma biblioteca móvel,
oferecendo títulos para as demais detentas. Nos últimos dias, porém, Daniele
tem notado um alvoroço maior toda vez que passa. É a curiosidade em torno da
lei da remissão de pena por leitura, que permite o abatimento de quatro dias na
prisão por cada obra lida. Já publicada no Diário Oficial do Estado, a redução
vale para todos os detentos, inclusive, aqueles que cometeram crimes hediondos.
Com o limite de um livro por mês, cada cativo pode diminuir até 48 dias por ano.
“A pena é
entendida por muitos como uma vingança, mas essa é uma lógica que deve ser
superada. A remissão é um esforço pela humanização do sistema prisional”,
afirma Hélio Leitão, titular da Secretaria da Justiça (Sejus), em visita ao
local de trabalho de Daniele, que sorri em acenos de cabeça. A bibliotecária
por acidente assume ainda não ter respostas claras para oferecer às suas
colegas, pois a lei ainda está sendo implantada pela Sejus, em parceria com a
Secretaria da Educação (Seduc). Até o fim de fevereiro, porém, deve estar em
pleno vigor.
A Seduc está
montando comissão para acompanhar as leituras e definir quais títulos valerão
para o abatimento de dias, entre obras filosóficas, sociológicas e literárias.
Daniele não sabe se seu livro preferido, A vida na porta da geladeira, de Alice
Kuipers, estará entre os selecionados. O enredo conta a relação entre mãe e
filha que quase nunca se veem e que se comunicam deixando recados na porta do
refrigerador. Para a mulher que vive encarcerada com a mãe, independentemente
de remissão, as 240 páginas da ficção seguirão amenizando as noites na
realidade.
“Leitura
não é tudo”
Um novo 6 de
fevereiro chegou e, enquanto Daniele contava um ano presa, a jovem Mariana foi
detida por assalto à mão armada. Com “ensino médio completo”, a mais recente
capturada já gostava de ler antes do cárcere. “Eu já tinha o hábito da leitura,
queria fazer faculdade. Eu tive estudo, família e mesmo assim cheguei aqui”,
relata, com voz mansa. Do alto dos 21 anos, ela já aprendeu que “leitura não é
tudo”. Entretanto, não deixa de comemorar a lei da remissão. “Outras detentas
que não têm costume de ler vão começar a mudar de vida”, projeta.
Longe dali, em
seu gabinete, o deputado estadual Heitor Férrer (PDT) critica a lei. “Mesmo que
a leitura engrandeça e (o detento) ganhe o prêmio Nobel de Literatura, ele tem
de continuar preso. Estão confundindo ressocialização com redução de pena”,
acusa o parlamentar. Para Heitor, a remissão pela leitura é um “mecanismo
gerador de impunidade” no País. “O preso tem que ler mesmo, estudar, ter um
ofício, mas é inaceitável que a leitura por si só reduza a pena”.
Hélio Leitão,
titular da Sejus, rebate: “A remissão não pode ser confundida com frouxidão”. O
gestor afirma que a redução faz parte de busca por “novas alternativas e
modelos” no sistema prisional. “As pessoas que cometeram crimes merecem
punição, não perder a dignidade, a condição humana”.
Liberdades
Egresso do
sistema prisional cearense, o pesquisador nigeriano Cornelius Okwudili Ezeokeke
escreveu Penas mais rígidas: justiça ou vingança?, um dos títulos destaques na
biblioteca frequentada por Mariana. Para ele, que cursou o ensino médio no
presídio, a leitura figurou como remissão de vida. “Em meu período de detento,
a única coisa que me ajudou a superar a realidade degradante foi os livros a
que tinha acesso e que me fizeram amar estudar”, defende. “Não tem como ter a
educação sem leitura. A população carcerária precisa dessa oportunidade”.
Enquanto
aguardam o início efetivo da redução, Daniele e Mariana seguem lendo. A jovem
de 21 anos ajuda a amiga contando enredos de livros que lê para que a “emprestadora”
espalhe as histórias. Já Daniele se arrisca também na escrita. Ela se alegra
sempre que a sua sogra responde as cartas querendo tirar dúvida sobre algum
vocábulo. “Eu estou falando bonito agora”, conta, já esperando ansiosa para
conhecer a caligrafia da filha de 5 anos.
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