Em Minas Gerais, uma prisão onde os presos têm a
chave da cela
Presídio sem polícia e sem vigilante armado parece inviável. Presídio
sem polícia, sem vigilante armado e onde os próprios presos ficam com as chaves
de suas celas, parece delírio. Pois é exatamente esse o tipo de prisão que vem
se multiplicando por Minas Gerais.
O modelo, que tem apoio do governo de Antonio Anastasia (PSDB) e também de grandes empresas, é defendido
como uma forma mais humana e eficiente de recuperar criminosos. Mas é também
alvo de muitas críticas. A maioria delas diz respeito ao tratamento considerado
excessivamente brando dispensado a quem tem crimes violentos nas costas. O
modelo de presídios vigiados pelos presos começou nos anos 70, no interior de
São Paulo, mas se firmou em Minas. Trata-se de uma metodologia aplicada pela Associação de Proteção e Assistência ao
Condenado (Apac), uma entidade privada sem fins lucrativos com raízes
num grupo de fiéis católicos. A religião faz parte do dia a dia das Apacs, mas
sem imposição de credos, dizem seus promotores. "Há dez anos, havia quatro
ou cinco Apacs em Minas. De
cinco anos para cá, esse número cresceu muito", diz Valdeci Ferreira, diretor-executivo da
entidade que reúne as Apacs no
país, a Fraternidade Brasileira de
Assistência aos Condenados (Fbac).
Em Minas Gerais, 35
presídios funcionam atualmente sob a cartilha da associação. Neles estão 2.000
presos, a maioria homens. Cumprem penas em regime fechado, semiaberto e aberto,
condenados por assalto, tráfico de drogas, latrocínio, estupro, homicídio e
outros crimes. A população carcerária total de Minas é de 57 mil. Este ano, o
Estado já repassou R$ 20 milhões para as Apacs segundo a Secretaria de Defesa Social. Há duas semanas, um presídio Apac
foi inaugurado em São João Del Rey,
e até o fim do ano mais três devem entrar em operação. Além das 35 unidades em
Minas, diz Ferreira, há outros seis presídios Apac em operação no país:
um no Rio Grande do Norte, três no Maranhão, um no Espírito Santo e outro no
Paraná. E mais 20 em construção ou projeto. No Estado de São Paulo, o pioneiro,
o modelo deixou de existir no fim da década de 90.
O Valor esteve no mês
passado com os presos na unidade de
Pouso Alegre, municipio localizado no sul de Minas. O presídio fica na
zona rural e parte dos presos trabalha nas lavouras de café, milho, hortaliças
e lida com o gado e com a criação de porcos. Sempre sem algemas, com pouca ou
nenhuma vigilância. A produção abastece a prisão e o que sobra - café, por
exemplo - é vendido. A receita volta para a Apac. "Venho para cá às cinco da manhã, eu e um companheiro.
Ninguém vigia a gente", diz Robson
Prado, de 34 anos, que cumpre pena de 26 anos e está atualmente no
regime semiaberto. "Fugir? Se eu quisesse, olha aí", diz ele
apontando para a mata ao lado do curral onde acabara de ordenhar uma vaca.
"Tô preso pela consciência."
O presídio fica próximo à estrada que liga Pouso Alegre à vizinha Borda
da Mata. Não tem muros altos, cercas, barreiras. Nem vigias na entrada.
Dentro de uma guarita, de onde uma frágil cancela é aberta e fechada, um
funcionário anota os nomes dos visitantes.
Assim como nos demais 34 presídios Apac, em Pouso Alegre
não se vê policiais, vigias ou carcereiros armados. O chefe da segurança - o
cargo é de encarregado pela segurança e pela disciplina - é um ex-padre: Valdeci Augusto da Silva de 37 anos,
formado em teologia e filosofia. Ele deixou a batina em 2008 e desde então é
funcionário da Apac na cidade. Silva
comanda uma equipe de oito plantonistas de segurança, que fazem o trabalho de
vigilância. Nenhum deles trabalha armado. Considerando os períodos de trabalho
e descanso, são dois plantonistas por dia e dois por noite para lidar com 200
presos.
Desde o início do ano, o presídio registrou três fugas - duas delas de
presos que não voltaram de indultos temporários, e outra de um homem que
escapou. O sistema prisional mineiro registrou este ano 27 fugas ao todo. Em Pouso Alegre, os presos que estão no
regime semiaberto circulam pela área do sítio e pelas dependências do edifício
central, uma construção térrea e cheia de janelas e portas abertas, de onde se
tem acesso à padaria-escola, à oficina de funilaria e pintura, às salas para
palestras, cultos, missas, aulas com professores da rede pública e outras
atividades. O acesso à estrada é fácil.
Quem está no regime fechado - 90 presos atualmente - tem uma rotina mais
restrita. Ficam dentro de uma ala, isolados dos demais. Mas nada comparado às
prisões convencionais, onde os condenados ficam trancafiados praticamente o dia
todo. Na manhã de terça-feira, dia 19,
quando a reportagem chegou ao presídio, foi Flávio Felipe Maia, de 32 anos, condenado a 11 anos e dois meses
por assalto e tráfico, quem pegou um molho de chaves para abrir o pesado portão
de ferro da ala do regime fechado. Maia
trabalha na portaria da ala. Fica com as chaves e um rádio de comunicação e é
um dos que ajudam na vigilância dos demais, explica ele. Quando ele abre o portão, a visão que se tem
é a de uma área de lazer que faz lembrar a de um clube ou de um edifício de
apartamentos. Uma piscina média revestida de pastilhas em tons de azul, uma
quadra de futebol e de vôlei, ao fundo uma sala com aparelhos de ginástica.
Plantas decoram o pátio iluminado pelo sol intenso da manhã. O chão está
impecavelmente limpo. E as celas, vazias.
Pouco antes do almoço, os 90 presos, que estavam divididos em aulas,
palestra dos narcóticos anônimos e em oficinas de artesanato, começam a voltar
para suas celas - ou quartos, como se referiu a elas um dos presos. Há um certo
ritual nesse momento. Quem abre as grades são alguns presos que estão há mais
tempo na Apac. "Antes, um agente me trancava e me abria a cela. Hoje,
somos nós mesmos que trancamos e abrimos", diz Alex Carlos Sabino, após abrir a cela que divide com mais sete
presos. Condenado a 24 anos por tráfico de drogas, Sabino diz que termina o
ensino médio no ano que vem. Na prisão. E que na Apac, não só sua vida mudou,
mas a da família também. "Aqui se a pessoa quiser fugir, foge. Mas se eu
fugir, vou acabar voltando para o presídio comum e minha família vai voltar a
ser humilhada."
Um de seus companheiros de cela é um novato na Apac. Mario Verona Júnior tem 24 anos e uma
pena de 5 anos e seis meses também por tráfico. Faz artesanato e tapetes, como
laborterapia -trabalho mesmo só para quem não está mais no fechado. Verona
resume assim as diferenças entre o presídio de Pouso Alegre e a prisão comum onde estava: "Lá ficava 22
horas dentro da cela, aqui é praticamente só para dormir. Lá usava uniforme
vermelho, aqui a gente escolhe a roupa. Lá era só careca, a aqui a gente
escolhe o cabelo. Lá não tinha boa educação, aqui a gente estuda. Lá eram 20
pessoas numa cela falando só de crime, crime, crime. Aqui não tem nem tempo
para isso e quem vem para cá vem para mudar".
Verona lembra o que lhe
chamou a atenção assim que chegou. "Já fazia uns dois anos que não entrava
em piscina. Um dia depois que eu cheguei, na hora do lazer, entrei na piscina
daqui." Perto da cela de Sabino
e Verona, duas câmeras de
vigilância, com os fios à mostra, foram desativadas e a cerca elétrica que
existia na laje sobre as celas foi retirada.
Por mais que as condições de uma Apac
sejam muito melhores para um condenado cumprir a pena, o modelo não agrada a
todos. "Se o preso está acostumado com a ociosidade, se não está disposto
a seguir regras, a ter disciplina, isso não serve para ele. Para alguns, ter de
acordar às 6h, trabalhar, estudar, são coisas que fazem com que o regime da
Apac pareça mais rigoroso do que o sistema comum", diz o juiz da 2ª Vara
Criminal e de Execuções Penais, Sérgio
Franco de Oliveira Júnior. Oliveira
Júnior é um entusiasta da Apac,
sistema que conheceu quando morou em São
José dos Campos, no interior de São Paulo, entre os anos 70 e 80, onde o
modelo começou. A primeira experiência é de 1972.
Alex Sabino, na cela que ocupa
com 7 presos: "Se a pessoa quiser fugir, foge, mas acaba voltando para a
prisão comum" A ideia na época, e
ainda hoje, diz o juiz, era criar um modelo alternativo ao sistema prisional
comum, que é em geral superlotado, muitas vezes marcado por corrupção,
violência e de onde os presos tendem a sair mais perigosos do que quando
entram. "O maior problema do
sistema prisional comum é que o condenado é privado de tudo, não só da
liberdade, que é a única condição que o Estado tem direito de privá-lo. O
condenado em geral perde a dignidade, perde sua condição humana e a partir daí
perde o medo de continuar na criminalidade", diz Oliveira Júnior. "No
sistema comum, o processo de recuperação do preso está hoje em terceiro
plano", afirma o juiz. O que a Apac faz, segundo ele, é cumprir a lei de
execução penal. A ideia é que um preso que passe por um processo decente de
recuperação e ressocialização volte para as ruas, e não mais para o crime. Oliveira Júnior admite: "Se o
sujeito quiser fugir, vai ter total condição de fugir sem fazer muito esforço,
no semiaberto principalmente, porque aqui não tem cerca, portão."
Os casos de reincidência ultrapassam os 80% entre os presos que passaram
pelo sistema penal convencional no Brasil, enquanto que entre os egressos dos
presídios das Apacs é de 10%, segundo Jair Francisco dos Santos, juiz auxiliar
do Tribunal de Justiça de Minas. Os
resultados do modelo têm despertado o interesse de empresários, igrejas,
associações sociais e outros grupos a tomar a iniciativa de formar uma Apac em
suas cidades, sempre com o apoio do juiz de execuções penais, diz Ferreira, o diretor-executivo da Fbac. Grandes empresas, entre elas
Fiat, Arcelor Mittal e Usiminas, já mantêm uma organização, a Minas pela Paz,
que, segundo Ferreira, ajudam na
capacitação dos presos das Apacs. "Eles também fazem reuniões, café com
empresários, palestras, visitam empresas". É uma investida para divulgar
as Apacs e abrir caminho para futuras contratações de egressos por empresas das
regiões onde estão os presídios.
Parte do método da recuperação passa pelo que é chamado de
autovigilância. "Se o cara tá falando de crime, eu chego e dou uma ideia
nele e chamo o plantonista", diz Flávio Felipe Maia, que além de controlar
a abertura do portão é integrante do Conselho de Sinceridade e Solidariedade,
grupo formado por presos que ajuda a manter a disciplina nas Apacs. Seus
integrantes denunciam e vedam, por exemplo, drogas, celulares, planos de fuga. Recentemente, conta Valdeci Silva, três simpatizantes do PCC, facção que
controla a maioria dos presídios paulistas, chegaram à Apac de Pouso Alegre.
Em menos de uma semana, a direção da instituição foi informada por presos mais
antigos e os três, transferidos dali. O plano frustrado dos três era serem
resgatados, ou fugir da Apac,
disse Silva.
Ter as chaves das celas ou das alas é expressão máxima da
autovigilância: uma forma de construir relação de confiança, de valorizar quem
se mostra disposto a mudar de vida. E acima de tudo, um símbolo de rompimento
com a criminalidade, dizem os defensores das Apacs. A prisão de Pouso Alegre tem outra expressão da
autovigilância que até parece mentira. "Já participamos de umas dez
corridas de rua", diz o ex-padre. "A prática de esportes é uma
atividade para ajudar o tratamento da dependência química e as corridas também
ajudam a quebrar o preconceito da sociedade."
Em dias de provas, Silva vai com os presos. "A gente corre junto,
mas alguns vão atrás e outros vão na frente. Na linha de chegada, nos
encontramos", conta ele, enquanto aponta os troféus que condenados já
ganharam. Estão expostos numa prateleira na entrada do refeitório dos presos do
semiaberto. É difícil encontrar em Minas
entidades, instituições, pessoas públicas que manifestem abertamente
resistências a essas prisões. A polícia mineira parece ser um foco de críticas.
A reportagem conversou com um agente da Polícia Civil em Pouso Alegre, que já trabalhou na
prisão de muitos criminosos. "Isso é tudo balela", disse o agente,
que pediu para não ter seu nome divulgado. "As pessoas aqui na cidade
ficam constrangidas ao verem presos circulando em Kombis da Apac para irem
fazer alguma atividade externa. O cara vê o sujeito que viciou o filho dele, ou
que roubou a casa dele, e não entende isso."
Um dos críticos mais contundentes do método é um ex-policial e advogado,
que entrou para a política e exerce mandato de deputado estadual. Para o Sargento Rodrigues (PDT-MG),
"presos que cumprem penas nas Apacs
não podem ser presos que cometeram crimes como homicídio qualificado, estupro,
latrocínio, tráfico. Nas Apacs
eles são tratados como se fossem pessoas que não têm periculosidade." O deputado acaba de apresentar um projeto de
lei que veda aos juízes a possibilidade de as Apacs abrigarem quem cometeu crime hediondo. "Quem defende a
Apac quer desconstruir a lógica do direito, segundo a qual crimes brandos
merecem penas brandas; médios, penas médias; e graves, penas agravadas",
afirma Rodrigues. O deputado diz que o
método seria adequado para quem comete crimes não violentos contra a pessoa -
os condenados pelo mensalão, sugere. O deputado diz duvidar que presos atuais cumpram
o papel de carcereiros sob a ideia da autovigilância. Questiona os números
sobre reincidência e diz que se a Assembleia Legislativa fiscalizasse as Apacs
encontraria muitas irregularidades.
O modelo, no entanto, atrai a atenção de estrangeiros e já mereceu
elogios da Prison Fellowship
International, órgão consultivo da Organização das Nações Unidas (ONU)
para temas carcerários. Para entrar na Apac, o primeiro passo deve ser dado
pelo preso: é dele que deve partir o pedido para uma transferência. Há uma
fila. Só na de Pouso Alegre, são
140 esperando por uma vaga Cabe ao juiz de execução penal avaliar quem ou não
enviar. Segundo Oliveira Júnior,
o preso tem de ter uma sentença de condenação, não ter cometido nenhum ato de
indisciplina no sistema comum e quem tem mais tempo num presídio comum tem seu
pedido avaliado com prioridade. Na entrada, se o preso disser que não usou
drogas na prisão anterior, pode ter de se submeter a um exame toxicológico.
Homicidas, traficantes, estupradores, estelionatários, assaltantes: as Apacs não selecionam por delito. A
filosofia é "matar o criminoso e salvar o homem". Quem critica, faz
uma paródia: "Dar regalias ao criminoso que matou o homem". O subsecretário de Administração Prisional de
Minas Gerais, Murilo Andrade Oliveira,
diz que o Estado tem investido no que chama de alternativas de sucesso à
execução penal convencional. Nesse rol, ele cita a difusão de tornozeleiras
eletrônicas, de um presídio construído e administrado por meio de uma parceria
público privada e também Apacs. "A
gente vê a Apac como uma forma
altamente viável de recuperação dos presos e com custo extremamente
baixo", diz ele. O valor repassado pelo governo às Apacs de Minas para
manter cada preso varia de R$ 700 a R$ 800, segundo a Fbac. O desembolso per capita no sistema convencional é de R$
1.800. Na PPP, R$ 2.700 porque embute o preço da obra. A diferença se deve em
grande parte aos fato de as Apacs não precisarem de vigias, armamentos e também
por, em geral, contarem com uma rede de voluntários.
"A ideia do governo de Minas é continuar expandindo o número de Apacs e o número de presos nessas
prisões. Acredito que, num prazo razoável, poderíamos ter entre 10% a 15% da
população carcerária de Minas nas Apacs", diz o subsecretário. Hoje, os
2.000 presos nas unidades representam 3,5% do total dos encarcerados.
Fonte: Reportagem é de Marcos de Moura e Souza, publicada no jornal Valor, 09-12-2013.